TEXTOS


«A cultura portuguesa como tal, isto é, numa originalidade que parte da filosofia para as formas artísticas e poéticas, não é social, académica e universitariamente reconhecida.»
 António Quadros, Angústia do Nosso Tempo e a Crise da Universidade. Ensaios, Cidade Nova, Lisboa, 1956, p. 10.

«A sociedade moderna recusa-se a considerar o homem concreto, o homem "em situação", o homem com um destino próprio, o homem diferente. Ao invés, triunfam todas as formas de expressão e de acção em que o homem concreto morre para dar lugar ao homem abstracto: o homem sem pátria, o homem sem história, o homem sem família, sem crenças, sem paisagem...Triunfa a arquitectura para habitação de homens abstractos (...)»
Idem, Ibidem, p. 10. 

«Este grande e inconfundível messianismo que jaz, recôndito ou esquecido, mas exprimindo-se sempre dos mais diversos modos, na alma de todo o português, messianismo tão ardente, tão apaixonado quanto ignorado nestes dias em que outras forças parecem ter adquirido a primazia absoluta, este messianismo persistente e resistente que subsiste até no inconsciente dos mais ferozes inimigos do saudosismo, do sebastianismo ou de qualquer das formas de uma Esperança que, entre nós, é síntese e ponto de encontro de passado, futuro e presente, tem-se revelado alternadamente em Portugal e nos portugueses como fonte de pura criação, nascente inesgotável e ainda mal explorada de sentimentos, ideias e formas (...)»

Idem, Ibidem, p. 21.

«Em última análise, a originalidade de uma cultura, depende pois da originalidade de uma filosofia que a garanta e responsabilize. Não é possível falar do homem sem uma concepção prévia do homem, da sua natureza, da sua situação, do seu lugar ontológico. Se tantos escritores portugueses não logram ultrapassar o âmbito local, se apenas conseguem impor-se por um talento que vence ou vencido, desde que o gosto público a aceita ou repudiam se não atingem uma real originalidade criadora, decorrente com pureza dos "dois tempos" do estilo é porque perderam o contacto com os mitos, as tradições e os símbolos nacionais, isto é, com a transcendentalidade específica do "ser português", na expressão de Pascoais, não o restabelecendo modernamente pela readequação filosófica.»
Idem, Ibidem, p. 31.


«Uma metáfora pode sempre substituir-se por outra metáfora, mas um símbolo não pode nunca substituir-se por outro símbolo.»
Idem, Ibidem, p. 39.

«O filósofo português tenta a síntese do natural e do sobrenatural, do essente e do existente, do material e do espiritual. (...), em vez de manifestar a sua preferência por qualquer dos termos, como na dialéctica racionalista, antes procura um terceiro termo, um termo da síntese. Filosofia do próximo e do longínquo, mas que não quer chegar ao longínquo sem o encontrar no próximo, a filosofia portuguesa pode portanto dialogar com a poesia sem perigo de a perverter, de a afastar da vida (...) Enquanto no filósofo, a palavra exprime e completa a ideia, pois a ideia sem a palavra, seria unicamente uma nebulosa (...) no poeta a palavra exprime aquilo que poderemos chamar a pré-ideia ou a carnalidade ou a materialidade da ideia, isto é, aquela via percorrida entre o sujeito e o objecto até se interpenetrarem, via que é emoção e sentimento, risco e aventura.»
 Idem, Ibidem, pp. 40/41.


«Uma coisa é anunciar o Quinto Império, o Império da Verdade e do Amor, como realidade possível e desejável desde que se cumpram determinadas condições didácticas, políticas e espirituais, outra coisa é anunciar o Quinto Império como realidade de tal forma evidente que se pode principiar desde já a escrever a sua história, a "história do futuro"»
 António Quadros, Introdução à Filosofia da História, Lisboa, Editorial Verbo, 1982, p. 43.

«É inevitável que a história particular ascenda à história filosófica, mas não há história filosófica, afirmamo-lo no limite, que não tenha de apelar para uma filosofia da história que a oriente nas suas interpretações e leituras.»
 Idem, Ibidem, p. 45.

 «(...) contestamos toda a história que não dê lugar de relevo ao personalismo, isto é, que faça do homem um exclusivo produto dos movimentos e das lutas sociais e económicas (...) O homem é um ser em situação, é um ser social, mas ao mesmo tempo é um transcensor da situação, da circunstância, da necessidade. É, em suma, dotado de energia própria e de liberdade.»
 Idem, Ibidem, p. 52.

«A história é, pois, história dos homens, isto é, história do homem e da sua liberdade, impulsionado embora, de modo que nos surge como enigmático, por causas finais, de gradação escatológica porventura inexaurível.»
Idem, Ibidem, p. 59.

«Uma verdadeira teoria do conhecimento histórico procura, pois, não o dever social em ordem a uma dialéctica classicista (...), mas o ser do homem, na sua integralidade, em constante conotação entre o sido que até nós chega e o sendo que vivencialmente experimentamos, contemplamos e analisamos. (...) O sido é captado pelo sendo não tanto em termos dialécticos como em termos dinâmicos, porque o tempo não tem rupturas e o desfecho da história passada está sendo, continuamente está sendo, numa impossibilidade de detenção ou cristalização (...). Este dinamismo prospectivo antropofilosófico é o único critério de que dispomos para deduzir um dinamismo histórico do caos dos factos, em si "mudos e irresponsáveis"»

Idem, Ibidem, p. 64.


«A filosofia da história é o produto lógico da síntese espontânea entre a observação defeituosa do sido e a observação existencial do sendo que o historiador representa e que é o seu verdadeiro foco de iluminação das imagens caóticas, fragmentárias e mortas dos factos; e é o produto lógico do encontro entre uma concepção do mundo e do homem que tem raízes na sua relação com a vida, com o ser e com o espírito (...). E quanto mais consciente for este ajuste entre o filósofo e o investigador, quanto mais filósofo for o historiador, mais probabilidades haverá, não só de adequar a história à verdade (de que sempre exprime um afastamento), mas também de ultrapassar o próprio historicismo, conferindo-lhe o lugar que lhe compete no quadro do conhecimento.»

 Idem, Ibidem, p. 88.


 «E temos já três evidências da filosofia da história:a relatividade da história perante a filosofia viva; a irredutibilidade da história à ciência; e a relatividade do passado face ao presente.»
 Idem, Ibidem, p. 91.


«A razão de Portugal, a razão de ser deste país antigo, encontra-se envolta na mais densa bruma. Tornou-se um mistério ou é um mistério? Emergência da nação lusíada, seu destino inesperadamente fulgurante, seu projecto áureo, sua persistência à adversidade, sua longa e relutante decadência, seus mitos de regeneração, suas obras de génio, suas estrelas cintilantes e dir-se-ia que proféticas no crepúsculo, tudo é hoje interpretado casualmente, a partir de teorias da história opacas, diminutivas, reducionistas, que no fundo espelham o dominante espírito da nossa época positivista, materialista, utilitarista. Mas nada do que é humano, estamos convencidos, é casual e aleatório.»

António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, Lisboa, Guimarães Editora, 2ª ed., 1999, Livro I, p. 15.


«O patriotismo familiar, habitual e espontâneo não é suficiente para fundamentar uma convicção patriótica resistente, coerente e à prova de todos os exteriores, modas e ideologias deformadoras. Ele exige na verdade, ao seu nível e para além dele, a religação àquilo que poderíamos chamar o patriotismo racional de elites conscientes do significado de valores que nele se representam. A comunhão colectiva do patriotismo, para não degenerar em fanatismo, em psicologia de rebanho ou em vacuidade sentimental à flor da pele, depende da capacidade intelectual de uma geração para formular a sua própria patriosofia (...)»

Idem, Ibidem, p. 19.


«Daí a necessidade que sentimos de esboçar e propor uma arqueologia da tradição portuguesa, visando não só a procura daquele projecto áureo interrompido ou esquecido, mas cifrado nos sinais, nos símbolos e nos textos que dele, dispersos embora, subsistem, mas também a redescoberta dos seus primeiros princípios, na convicção de que não é o projecto situado de uma época, mas o de uma pátria em seu destino supratemporal, porventura desviada e separada da sua genuína razão teleológica interna e canalizada a certa altura para formas espaciais e voluntaristas impuras.»
 Idem, Ibidem, p. 20.

«É nossa convicção efectivamente, em tese talvez para muitos inesperada, que o espírito português ou o espírito subtil que lhe é interior, teve uma primeira emergência com a civilização megalítica e dolménica, que a nosso ver foi a Atlântida, por excelência a civilização fundadora, de que despertam todas as posteriores civilizações mediterrânicas, desde a egípcia à grega. Foi a primeira emergência e é o primeiro mistério da terra marítima portuguesa, terra sagrada, onde se terá dado, se não é errónea a nossa investigação e análise, a metamorfose culminante do homem rupestre e mágico no homem viandante e espiritual, vivendo a autora da religião dinâmica e solar que presidiu ao despertar do género humano para o seu prodigioso destino e fazendo o seu apostolado numa empresa marítima que foi o paradigma, até religioso, da que caberia mais tarde aos portugueses, descendentes dos dolménicos-atlantes, realizar.»

Idem, Ibidem, p. 23.

«Mais poderosa é todavia em Camões a poïesis transfiguradora. Poïesis, acto de fazer, no caso de fazer como edificar ou construir, pela magia da palavra, do verso e do ritmo. Neste sentido, cantar não é uma forma unicamente estética, é, pela lei mágica das equivalências, accionar uma energia (energia espiritual, verbal e poética) que tem consigo uma força por assim dizer ôntica, na concepção heideggeriana de que a palavra, e mais fortemente a palavra poética, não é apenas desveladora, mas também fundadora do Ser. Em análogo sentido, palavra e palavra poética são para Leonardo Coimbra criacionistas e por isso escreveu que as oitavas dos Lusíadas, ondas do mar salgado, são eternos estremecimentos da memória, esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria.»

Idem, Ibidem, p. 36.


«Portugal, periferia privilegiada ou eleita, eis a chave do enigma. Chave que no entanto só é dada a quem reflectir sobe o espírito deste lugar que é o nosso, a partir da relação complexa entre a geografia física, a geografia humana e a geografia cultural. Espírito do lugar é expressão, efectivamente, que nos fala da emergência do espírito, segundo a condição e a liberdade de uma situação e da sua variação no tempo. Encarnação num colectivo situado, que Luís de Camões simboliza como a cabeça (Portugal) de um corpo (Europa), colocada pelo destino ante o oceano misterioso, desafio e destino dos filhos de Luso.»

Idem, Ibidem, p. 44.


«Atenas e Lisboa situam-se na mesma coordenada. A Grécia e Portugal são duas periferias sul e sudoeste europeias. Contudo, entre o mar com fim, o Mediterrâneo, e o mar sem fim, o Atlântico, entre o clássico que representa esteticamente o primeiro, e o barroco que representa o segundo, há uma distância que não pode medir-se em termos puramente espaciais ou de uma especialidade abstracta. À luz do topo-análise, conceito desenvolvido por Gaston Bachelard, o espírito do lugar (que compreende o espaço mas ao mesmo tempo o transcende), fala mais alto.»

Idem, Ibidem, pp. 49/51.


«A natureza humana poderia ser definida pela cruz dos quatro elementos, a Terra em baixo, à esquerda a Água, à direita o Ar e em cima o Fogo. A intersecção dos dois raios ou segmentos da cruz constituiria uma experiência espiritual específica, a da vivência simultânea e sublimada de todas as vias elementares, correspondendo à Quinta Essência ou à Pedra Filosofal, conotada com o Herói ou com o Cristo.»

Idem, Ibidem, p. 53.


«Há um movimento nebuloso mas bem real do térreo para o ígneo, isto é, para o destino prometido nos sonhos, nos mitos e nos ideais dos nossos poetas, profetas, heróis, santos e sábios, genuínos representantes do Povo português pela eleição do génio, da iluminação e da grandeza. Mas é um movimento de espiral, desenvolvendo-se como em grandes círculos ou ciclos que por vezes se repetem embora nunca idênticos, ora progredindo, ora impetuosos na sua expansão, ora parecendo à beira de se deter e de morrer. A espiral, símbolo de energia espiritual, representada muitas vezes pela serpente, está presente desde o longínquo neolítico. Aliás era já muito antigo o culto da serpente na Lusitânia, como o demonstrou Mendes Correia no seu trabalho sobre A Serpente, Totem da Lusitânia. À Lusitânia se chamou Ophiussa, a Terra da Serpente.»

Idem, Ibidem, p. 59.


«Sem uma païdeia portuguesa renovada jamais poderemos ter uma pátria portuguesa dinâmica, criadora de valores, voltada para o futuro a partir das suas raízes e das suas linhas genéticas fundamentais, sem as quais a nossa identidade se perderia num progressismo vazio e superficial.»
Idem, Ibidem, p. 61.

«Esta mesma imaginação, levando à activação psíquica de dois mitos fundamentais do nosso inconsciente colectivo, o mito do Quinto Império e o mito do Encoberto, alimentou com o primeiro a energia espiritual de toda a história portuguesa de sentido universalista e com o segundo a esperança na regeneração da grandeza perdida, depois dos nossos sucessivos desastres e fracassos até ao dia hoje.»

Idem, Ibidem, p. 81.